Hoje, pela manhã, encontrei na farmácia um tratamento que só estava habituada a assistir na mercearia do meu avô. O farmacêutico lia os resultados das análises de uma cliente e aconselhava-a a ir ao médico, tranquilizando-a que parecia estar tudo bem. Antes de eu sair ainda chegaram 4 senhoras, todas vizinhas, conhecidas ou mesmo amigas que conversavam e se animavam juntas ali, na farmácia.
Lembrei-me então da mercearia do meu avô, que existiu no mesmo lugar, dirigida por duas gerações de "Cesários", durante mais de 70 anos. Como vivi até aos 12 anos numa casa ao lado da dos meus avós e como até nasci em casa, aquela mercearia, a loja, como lhe chamávamos era mais uma divisão da minha casa. E quem a fazia assim era o meu avô!
A inicial comparação com a farmácia deve-se ao facto de também lá se vender "de tudo", desde alimentos, bebidas, carnes frescas, salgadas ou congeladas (já na fase da minha avó, o que dará tema para mais de 10 post's...), produtos de higiene da casa e pessoal, calçado, linhas ou aviamentos de costura, material escolar e brinquedos, pregos e petróleo e até pastilhas para as dores de cabeça à unidade (que escândalo que pode parecer para quem não conhece o lugar...). Descontavam-se vales e ofereciam-se conselhos.
Era e ainda é terra de pedreiros, da magnífica serra de Canelas (ou de Negrelos, para amenizar divergências) e de cultos estranhos à volta da Capela do Senhor do Calvário, onde se acendiam umas velas (que o meu avô vendia) e se "deitavam" umas rezas.
Qualquer produto desejado por um cliente, e que não estivesse disponível no momento para a venda, seria comprado na tarde de 2ª feira (único período em que a loja estava fechada), onde o meu avô e o seu irmão Carlos (que era alfaiate) iam à baixa do Porto fazer as suas compras tão especiais.
Recordo-me tão bem de o ver chegar com os embrulhos de papel atados com cordel para facilitar o pesado transporte das suas compras.
Na mercearia do meu avô, que se localizava na rua a que deram o nome do meu bisavô, seu pai, o 1º Cesário de tantos da família, os pedreiros iam beber o seu copito de vinho ao fim da tarde. Sentados nos bancos aí colocados propositadamente, deitavam conversa ao ar, trocavam desabafos e esqueciam os problemas da vida.
Foi nesta mercearia que, do lado de dentro do balcão, ensinei 3 ou 4 pedreiros a assinar o seu nome, enquanto substituía o meu avô na sua hora de jantar (que para não prejudicar os clientes, era sempre desfasada da nossa). Com a energia de uma criança de 8 anos e o atrevimento que nunca me sossegou, obriguei-os a comprar cadernos de duas linhas (daqueles horizontais, de folhas fininhas...), lápis e borracha e marcava-lhes diariamente trabalhos de casa. E eles faziam, não sei se por gosto e orgulho de dizer que sabiam assinar o seu nome, ou se para fazer a vontade à neta do Sr. Cesário, que muito estimavam.
Já está ser difícil escrever este post, porque sinto tanto a falta do meu avô e dos sábios conselhos que sempre me deu, das histórias que contava, camuflando um sermão e do seu assobio de mãos fechadas que alegravam os nossos encontros, os meus e o dos meus filhos, que ainda o conheceram muito bem...
Tal como "traçava" com gasosa os copos de vinho dos seus clientes para que, quando chegassem a casa, o álcool não os fizesse bater nas mulheres e nos filhos, também me aconselhava (nunca me proibiu) a não comer a lambarice que lhe pedia "porque depois a tua mãe vai ficar triste contigo por não teres apetite para a comida e depois, é capaz de te castigar...mas se mesmo assim quiseres eu dou-te"... Eu é que já não queria.
Ao fim de semana e sobretudo ao final do mês íamos todos ajudá-los a servir as clientes de mês, para dar uso à máquina calculadora onde nunca premiu uma tecla. A única oportunidade que nos dava era a de adicionar todas as parcelas dos preços que sabia de cor e do resultado apurado mentalmente do peso aferido na balança decimal (com pesos e contra pesos).
O meu avô também tinha um livro do deve e do haver, de cada um dos seus clientes a crédito. O dele era preto e grande, e cada cliente tinha o seu pequeno, para saber a quantas andava. E em tempos difíceis como eram aqueles, saiam da loja a dizer...
"Ó Sr. Cesário, é pr'ó livro"
O meu avô era muito bonito (quem não se conformava era a minha avó que, apesar de ser linda, perdia-se de ciúmes dele), de quem herdei os olhos azuis, tinha um porte atlético, que mantinha todas as manhãs, fazendo flexões entre os balcões da loja, minutos antes de a abrir (nunca depois das 7h) e dormia a sesta todas as tardes...no chão...para não se deixar ir pelo sono.
Dele fiquei com algumas recordações materiais, porque as da memória não se apagarão nunca, com as quais tenho mais afinidade: o metro, as linhas, as fitas, o papel mata borrão e as canetas de pena.
O texto é grande, mas não consegue retratar a grandiosidade do meu avô!
14 comentários:
Tão bonito, Isabel! Comovente e tão bonito!
Um grande beijinho!
Isabel, adorei a maneira como lembras o teu avô. Quem dera a mim conseguir expressar para o papel as saudades que sinto dos que amo e que já cá não estão. Lindo texto.
beijinhos
ps- não é de hoje que admiro os teus textos :)
Muito comovente o seu post e de uma descrição absolutamente deliciosa. Maria João
Como o teu avô deve estar orgulhoso das bonitas recordações que te deixou.
És realmente surpreendente e muito especial.
Mãe das M&M's
Bonita homenagem ao teu avô. Conheci também uma mercearia como a dele. Que saudades!
bj
Quem disse que os homens não choram...
Belíssimo!
Foi um privilégio também ter partilhado muitos momentos com o Sr. Cesário desde que me conheço (os meus avós maternos eram -já faleceram- vizinhos do Sr. Cesário, e a minha mãe trabahou na casa do Sr. Cesário e é amiga da filha, "Aninhas").
A sua sabedoria é marcante e estará eternamente presente. Não são poucas as vezes que digo aos meus fihos nas mais variadas situações: "lembras-te do que dizia o avozinho Cesário?"
R.
:-)) lindo
Que bonito, Isabel.
:)**
As recordações nunca morrem, ficam aconchegadas no coração.
Bjo
Maria
Sem palavras...
Muitas lágrimas e muita saudade...
Momentos únicos!
Parabens por tudo! Pelo texto, pelo avô, pelas recordações, enfim...Beijinhos
Belo texto...muito comovente! Uma bela homenagem ao teu avô.
Beijinhos
Que lindo texto, Isabel. E que boas memórias :)
Que maravilha esta história. Deu gosto ler. Parabens Isabel
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